Finitude Podcast — Como lidar com alguém com deficiência

Finitude Podcast
20 min readSep 15, 2020

Descrição do episódio:

Usar de histórias de vida de pessoas com deficiência (na sigla, PcDs) para tentar ver a própria existência como menos problemática é só uma das manifestações do capacitismo. Esse modo de discriminação aparece nas relações sociais e também na mídia, nos clássicos “exemplos de superação”. Para entender como combater essa forma de preconceito que considera PcDs como pessoas como não-normais, o episódio desta semana da série Como Lidar do Finitude ouviu Emerson Damasceno, paratleta, advogado, presidente da Comissão Estadual de Defesa da Pessoa com Deficiência da OAB-Ceará e da Comissão Nacional de Defesa da Pessoa com Deficiência do Conselho Federal da OAB.

**

O podcast Finitude foi criado por Renan Sukevicius e é apresentado por Juliana Dantas. O Finitude está no Instagram (@finitudepodcast) e no Twitter (@podcastfinitude). Para ser um apoiador, acesse www.apoia.se/finitudepodcast. O Finitude é um podcast da Rádio Guarda-chuva, que é a primeira rede brasileira dedicada exclusivamente a podcasts jornalísticos. O Finitude também é associado à rede B9. Episódios novos no seu tocador toda terça-feira. Você pode encontrá-los no Spotify, Orelo, Deezer, Apple Podcasts, Google Podcasts e demais agregadores. Para contatos comerciais, escreva para finitudepodcast@gmail.com.

Trilha sonora:

“Odyssey” by Kevin MacLeod (https://incompetech.com ) License: CC BY (http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/ ) Music from https://filmmusic.io “Industrious Ferret” by Kevin MacLeod (https://incompetech.com) License: CC BY (http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/ ) Music from https://filmmusic.io

Music from https://filmmusic.io

“Every Passing Second” by Otis Galloway ()

License: CC BY (http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/ )

===========

Roteiro:

Vinheta de abertura que diz: este podcast é uma produção da Rádio Guarda-chuva. Jornalismo para quem gosta de ouvir.

Narração da jornalista apresentadora:

Você se lembra quantas vezes já viu na TV uma grande história de superação de alguém que é deficiente físico?

{TRILHA SONORA INSPIRADORA CLICHÊ}

Pensa comigo… Uma imagem fechada no rosto de uma mulher. Dá pra ver que ela está posicionada numa pista de atletismo. Um raio de sol da manhã ilumina aqueles olhos determinados. E quando entra um novo quadro, está num plano mais aberto e todos nós descobrimos, juntos, que ela é deficiente física. Não tem as duas pernas. E mesmo assim, com as devidas adaptações, compete no atletismo. Ela conta um pouco do que lhe aconteceu. Em seguida entra uma grande mensagem motivacional. Palavras como “força” e “garra” não podem faltar. E talvez te ocorra que, no fim das contas, “quem quer consegue”, e a trilha sonora inspiradora vai crescendo enquanto a atleta vai correndo… crescendo, crescendo….

{A TRILHA SONORA CLICHÊ VAI AUMENTANDO E DEPOIS É REDUZIDA}

Nesse momento você já ta convencido de que os seus problemas não são nada perto dos daquela pessoa. Poxa vida, que grande inspiração, num é mesmo?

{EFEITO QUE INTERROMPE A MÚSICA DE REPENTE}

Hoje a gente vai descobrir que isso é uma forma de CAPACITISMO.

E inclusive vai saber direito o que que é capacitismo, afinal. Enquanto eu escrevo aqui o Word sublinha a palavra de vermelho, nem reconhece. E até pouco tempo atrás eu também não conhecia.

{TRILHA SONORA TRANQUILA, MISTURADA A SONS DE AVIÃO E TREM}

Eu sou Juliana Dantas e, nesta semana, a gente chega ao terceiro episódio da série Como lidar. Hoje, Como lidar com alguém com deficiência.

Seja bem-vinda, seja bem-vindo.

Pra gente começar essa conversa, vamo ficar em dia com o vocabulário e jogar no lixo todas as expressões que não servem mais ou que são ofensivas.

“Ah, mas poxa vida, esse mundo ta cada vez mais chato, tudo ofende agora” {frase dita com efeito diferenciado, um pouco mais abafada}

Na verdade o mundo sempre foi bem chato — tem sido chato, aliás -, especialmente pras conhecidas minorias sociais — que, no fim das contas, são maioria numérica. Chamar as coisas pelo nome — e pelo nome correto — é questão de respeito. Aquele…. Que é bom e todo mundo gosta, sabe?

Então vamo lá.

{TRILHA SONORA INSTRUMENTAL TRANQUILA}

Já houve uma fase em que se falava “portador de necessidades especiais”, “portador de deficiência” ou até termos horrendos tipo “aleijado”. Nada disso ta correto.

{Fala de uma voz masculina}Hoje a gente utiliza o termo pessoa com deficiência, né. Exatamente isso vem do movimento internacional. E ele vem do sentido de colocar o people first, né, pra que a pessoa tenha a identidade de ser uma pessoa. No caso, uma pessoa com deficiência.

{Volta narração da apresentadora} Esse é o Emerson Damasceno. Uma pessoa com deficiência. Ou, na sigla, PcD. Mas, claro, ele não é só isso:

{Fala x Emerson} sou advogado e também sou paratleta.

{Volta narração da apresentadora} Já esteve nas Nações Unidas representando o Brasil…

{Fala x Emerson} Estou presidindo a comissão estadual de defesa da pessoa com deficiência da OAB Ceará. Também o Conselho Municipal… de Defesa das Pessoas com Deficiência aqui de Fortaleza. E estou como membro da Comissão Nacional de defesa da pessoa com deficiência do Conselho Federal da OAB.

{Volta narração da apresentadora} E ele é muitas outras coisas também, tipo.. É casado com a Beatriz e eles têm três filhos. Torce pro Ceará. Se considera um otimista. Gosta e faz questão de dirigir. Um vício, digamos

{Fala x Emerson} em outra vida poderia ter sido piloto. Ou poderei ou fui, enfim. Sou apaixonado, enfim. Herdei isso do meu pai, porque meu nome é Emerson por causa do Emerson Fittipaldi. Tenho um irmão Ayrton, do segundo casamento do meu pai, então…

{Pergunta da apresentadora} Você jura? Hahaha

{Resposta x Emerson} é… somos apaixonados por isso. Hahaha

{TRILHA SONORA LEVEMENTE TENSA}

{Volta narração da apresentadora} Ao longo do episódio a gente vai ter chance de conhecê-lo melhor.

Dados muito desatualizados do IBGE mostram que, no Brasil, dez anos atrás, a quantidade de pessoas com algum grau de deficiência correspondia a um quarto de toda a população. Segundo a ONU, também com indicadores extremamente antigos, uma em cada sete pessoas no mundo é deficiente. A imensa maioria mora em países em desenvolvimento, como o nosso.

A defasagem de estatísticas é só uma das provas de que apesar da urgência, este é um assunto frequentemente deixado de lado. Sem o diagnóstico preciso, é impossível avançar de verdade em políticas públicas inclusivas.

E vamo agora entender que que é, afinal, o capacitismo. Basicamente, é o preconceito ou a discriminação contra pessoas com deficiência. Assim como existe o machismo contra mulheres ou o racismo contra negros, por exemplo. É baseado numa ideia de que existe um corpo perfeito ou um ser humano normal e qualquer coisa fora desse padrão é errada e deve ser corrigida, superada.

E o capacitismo pode se manifestar de várias maneiras…

{Fala x Emerson} Hoje em dia a gente tem, com a Lei Brasileira de Inclusão, a LBI, nós temos a previsão de vários crimes, né? Então a discriminação contra as pessoas com deficiência hoje é um crime. Está tipificado já na legislação brasileira. E… Muitas pessoas acabam discriminando a pessoa com deficiência por conta de falta de conhecimento, isso acontece, claro, mas também há esse tipo de uso por puro preconceito mesmo. No sentido de querer machucar, enfim.

{Volta narração da apresentadora} É capacitismo também quando se olha pra alguém com deficiência com pena. Tipo… “Ai, tão linda e numa cadeira de rodas”. Ou quando a gente quer xingar alguém e usa algum termo tipo… “retardado”. E ainda, quando esperamos da pessoa com deficiência um lampejo de inspiração pra gente. Se você que me ouve agora tem alguma deficiência, deve estar cansado de passar por esse tipo de coisa, né? Eu não consigo nem imaginar. Pode até me escrever no Instagram finitudepodcast ou no Twitter podcastfinitude se quiser me contar algumas das situações pelas quais você já foi obrigada ou obrigado a passar.

Antes da nossa listinha, que já virou tradição aqui na série “Como lidar”, alguns recados, chega mais:

{TRILHA SONORA AMENA}

Dá uma olhadinha aí na sua plataforma de áudio preferida — Spotify, Apple, Orelo -, se já ta apertado aquele botãozinho de “seguir” o Finitude. Se ainda não tiver, dá aquele cliquezinho maravilhoso pra sempre ser avisado quando pinta episódio novo toda terça-feira;

O Finitude é um podcast que depende do seu apoio pra continuar em pé. Nossa vaquinha virtual fica no apoia.se/finitudepodcast e você pode colaborar com 10 reais — ou mais, claro :) — todo mês. E aí recebe a nossa newsletter toda quinta-feira;

O último recado — mas não menos importante — antes de a gente retomar o episódio é pra você terminar de ouvir aqui o Fini e ir correndo lá pro feed do Põe na Estante, podcast parceiro da nossa Rádio Guarda-chuva, apresentado brilhantemente pela Gabriela Mayer. É um clube do livro em áudio e acabaram de sair dois episódios por lá: um, sobre o livro novo da Elena Ferrante, chamado “A Vida Mentirosa dos Adultos” e, o outro, sobre a obra Igor na Chuva, do escritor Hugo Guimarães. Na semana que vem, será o fechamento desta temporada que ta no ar agora, aí com um livro de ninguém menos do que Conceição Evaristo, não dá pra perder de jeito nenhum.

A Rádio Guarda-chuva, você sabe, é a nossa confraria. A primeira rede brasileira de podcasts exclusivamente jornalísticos. Você encontra a gente no Twitter e no Instagram como guardachuvapod, de podcast. Dá uma moral pra gente lá, vá?

{FIM DA TRILHINHA}

Voltando ao papo com o Emerson… Eu perguntei pra ele o que é morar no Brasil sendo uma pessoa com deficiência:

{Fala x Emerson} Olha, é uma atividade é uma… uma vida de risco. Diário. Diário mesmo. O simples ato de tentar sair de casa já é de uma dificuldade imensa, imensa mesmo. E pra não falar também na questão de uma das barreiras que está listada lá na Lei Brasileira de Inclusão e na própria convenção que é a questão atitudinal. A atitude das pessoas em relação às pessoas com deficiência. E é por isso que eu acho muito oportuno o debate, muito, muito interessante também o podcast, mas esse debate específico, como lidar com pessoas com deficiência porque muitas.. a grande maioria ainda não sabe como fazer… muitos tentam fazer, mas fazem errado. Não por má vontade, mas por desconhecimento. E outros acabam sendo capacitistas mesmo. Porque tendem a querer jogar a responsabilidade de tentar burlar, de tentar suplantar uma determinada barreira para as pessoas com deficiência e não pra quem de fato tem responsabilidade que são os estados e a sociedade em si.

{Volta narração da apresentadora} Então bora lá saber alguns pontos básicos sobre Como lidar com alguém com deficiência.

1 — Evite glamourizar ou romantizar aquela condição.

{Fala x Emerson} É uma coisa muito comum, quando a gente… a gente que eu digo somos nós, sociedade. A gente tenta colocar fulano de tal é um guerreiro porque ele consegue driblar uma deficiência que o atinge e é um guerreiro. O cara se supera. A mulher, o homem, enfim. Isso, na verdade, é o capacitismo querendo colocar a responsabilidade das barreiras para a pessoa. A pessoa que tem que superar, né? É uma armadilha que muita gente cai. Eu mesmo já caí, no início, e a gente cai muito. Querendo até dar um exemplo, eu sou um cara que motivo muitas pessoas, né? E no início tinha aquela coisa de “vamo superar, e tal”. Quem tem que se superar, quem tem que fornecer elementos para que as pessoas com deficiência possam estar numa condição mínima de igualdade com quem não tem deficiência são as estruturas sociais. Então é por isso que a gente vive um capacitismo estrutural. Há semelhanças com o racismo estrutural, né?

{Volta narração da apresentadora} Porque a sociedade…

{Fala x Emerson} …ela não é feita para a pessoa com deficiência. Por lei, ela está obrigada a isso, mas ela não é feita, ela não é pensada. E menos ainda pensada por pessoas com deficiência. Geralmente, quando se pensa, por um déficit imenso de representatividade, é pensado por pessoas sem deficiência. Que acabam pecando por inúmeros fatores até porque não sofrem isso, não vivem isso no dia-a-dia. Porque uma sociedade só é evoluída quando ela acolha todos que a compõem, na sua imensa e rica diversidade.

{Volta narração da apresentadora} E ainda dentro dessa história da tal superação, um exemplo particular do Emerson:

{Fala x Emerson} eu sou nadador, né? Ainda nado em águas abertas, treino muito na piscina quando tenho tempo e eu gosto de me superar. Mas eu gosto enquanto paratleta, hoje, comigo mesmo, competindo comigo mesmo, meu tempo, mas isso não é uma obrigação que eu tenho que ter em função de ser uma pessoa com deficiência. Isso é um direito. Se eu quiser me superar, ótimo.

{Volta narração da apresentadora} Só que muitas vezes isso aparece como uma obrigação…

{Fala x Emerson} Mas a sociedade acaba colocando como uma obrigação. “Fulano só vai se destacar, ou fulana, quem for, se tiver um projeto de superação”, né? E isso é terrível porque eu fiquei quatro anos numa cadeira de rodas, né, eu sou paraplégico, eu tenho paraplegia completa, e eu não mexo as pernas. Principalmente joelho, nada. Se eu ficar em pé sem uma órtese na perna eu caio. Os joelhos dobram, não tem comando. Eu mexo ainda um pouco do quadril aqui, em cima do quadril, porque a minha lesão medular foi baixa. Então, eu de dois anos e meio pra cá voltei a andar com andador e com as órteses. Eu tava tendo complicações de saúde por ficar muito tempo sentado na cadeira, então eu disse “bem, eu vou ter que fazer um trabalho de fisioterapia e ficar em pé de novo, né?”. E isso empolga muito as pessoas, “o Emerson é um guerreiro, é um herói porque faz isso e tal” e eu me sinto mal.. sabe, assim, uma culpa que eu não devia sentir, mas acabo sentindo porque digo, “Pô, embora eu precise disso, porque eu sempre fui um cara que estabeleceu metas e gostou” - até porque triatleta é assim, né, a gente ta brigando contra nós mesmos.. Mas ao mesmo tempo eu fico preocupado que essa mensagem seja deturpada no sentido de que uma pessoa deficiência tem que voltar a andar, no caso, um paraplégico. de forma alguma. de forma alguma.

{Volta narração da apresentadora}
2 — Preste atenção no que pode, até mesmo sem querer, marginalizar uma pessoa com deficiência.

{Fala x Emerson} O que não se gosta mesmo, se você perguntar, é você ser colocado como uma coisa diferente, né. uma coisa diferente de uma pseudonormalidade. Porque a normalidade só existe enquanto diversidade. Você fala “meu Deus, quando você estava normal”, ou seja, como se você agora não fosse normal… isso são pecadilhos, né, que se cometem mas que causam um mal estar imenso e obviamente não podem ser aceitos, né?

{Volta narração da apresentadora} Num exemplo recente envolvendo aquele senhor que ocupa a presidência da República…

{Fala x Emerson} ele pegou uma pessoa com nanismo nos braços e, em tese, se achava que ele tinha confundido com uma criança, né? Eu sou insuspeito porque eu declaradamente não tolero o atual governo federal. Não tolero o atual presidente, mas vamos lá. A gente não pode utilizar uma raiva como motivo pra ser capacitista e ser preconceituoso, né? Qual a pessoa com nanismo que efetivamente iria gostar e aceitar estar sendo constantemente vista com ar de anedota? Nenhuma, cara. Nenhuma. Então, aquele rapaz lá que foi lá abraçar o ídolo dele, isso aí cada um tem sua convicção, enfim, mas foi lá — e ele com certeza não gostou de ser tratado com motivo de chacota. Então, nenhuma pessoa com deficiência gosta de ser discriminada em função da sua deficiência.

{Volta narração da apresentadora}

3 — Respeite a autonomia da pessoa com deficiência como a de qualquer ser humano. Num caso de alguém cego, por exemplo…

{Volta x Emerson} Você nunca deve chegar e agarrar a pessoa pra movimentá-la. Você deve perguntar a ela: “olha, você precisa de ajuda? como eu posso te ajudar, né?” E geralmente, a PcD vai segurar no braço do guia e ele vai leva-la durante um determinado trecho. Empurrar cadeirante. Eu ainda sou cadeirante. Embora use muito menos, mas quando eu viajo ou vou a algum local de distância longa, eu uso a cadeira, não tem como andar com o andador e com a órtese. É muito mais prático a cadeira pra mim. Viagem ao exterior principalmente. Mas nunca empurrar uma pessoa que usa cadeira de rodas sem ela pedir. Você pergunta se ela precisa de ajuda. Risos Isso é um ato contínuo, as pessoas acabam, né, de imediato querendo empurrar. Isso aí, pelo amor de Deus, a gente detesta.

{Volta narração da apresentadora} Não deduza automaticamente que a pessoa precisa de você…

{Fala x Emerson} Tem que perguntar se a pessoa efetivamente precisa de ajuda. Se ela quer e como você vai ajudar. E nunca você supor que aquela pessoa já está precisando de ajuda ou que você vai ajudar da forma que acha que vai. Outro detalhe é: nunca tratar pessoas com deficiência como coitadinhos ou coitadinhas. Isso é o que de fato irrita muito, mais ainda, PcD, né, a gente só quer estar em condições minimamente igual. Quando tiver, ninguém precisa se preocupar, não. Até porque, por exemplo, quando nós temos.. eu também jogo basquete sobre rodas. Quando há um jogo, treino, quem for sem deficiência for assistir um treino nosso lá, c vai ver que de coitadinho a gente não tem é nada, né? Risos É um convite até que eu faço: vá acompanhar treino de PcD que fazem algumas atividades, você vai ver que o empenho é imenso e que de coitadinho não é nada. Agora, mas isso não leva a concluir que nós não necessitamos da eliminação das barreiras por parte do estado e da sociedade. Isso não é questão de pedir favor, não. Isso é questão de obrigação, questão de direito mesmo.

{Volta narração da apresentadora}

4 — Tenha em mente que uma pessoa que passou a ser deficiente em algum momento da vida passa por um luto:

{Fala x Emerson} Muito da fase de aceitação da pessoa com deficiência após uma mudança de vida, quando você adquire a deficiência, ela tem uma ligação imensa com o luto porque aquela pessoa que você era, ela não é mais. Você é uma pessoa, mas uma pessoa diferente, em função do que aconteceu, né? Cada um tem o seu tempo específico. O meu acho que durou dois anos pra que eu voltasse a perceber que conseguiria fazer as mesmas coisas, de uma maneira adaptada, mas conseguiria e deveria fazê-las, né?

{Volta narração da apresentadora} Fim da nossa listinha de hoje. É importante que a gente note que são considerações gerais. Se você convive ou for conviver ocasionalmente com uma pessoa com deficiência, na dúvida, pergunte. Cada pessoa tem a sua particularidade, como todo mundo.

Por falar em particularidade, eu perguntei pro Emerson se ele se sentia à vontade em dividir com a gente o que foi que o deixou paraplégico…

{Fala x Emerson} Eu tava treinando para o ironman de fortaleza, em 2014, eu ia fazer mais um iron, mais uma prova, né? Eera um longão, foi em março de 2014, completa sete anos agora…

{Apresentadora interrompe e pergunta} Que que é um longão para leigos como eu…?

{Fala x Emerson} Ah! Longão é um treino longo, acima de 100km.

{Apresentadora} Uau!

{Fala x Emerson} de ciclismo. eu já tava voltando, já tava próximo a Fortaleza, a dinâmica mesmo do acidente eu não sei porque eu não lembro de nada. Absolutamente nada. Só sei que acordei já tava no asfalto. E um carro, uma grande caminhonete me atropelou por trás. A narrativa da pessoa que dirigia a caminhonete foi de havia outro carro envolvido. E que esse outro carro me empurrou pra fora do acostamento, onde eu tava, e foi quando ele me colheu. Ele me pegou por trás. Foi uma pancada muito forte, né, por isso que a lesão foi uma lesão completa, né, que poderia ter me levado a óbito. A sorte que eu tava com um capacete muito bom, bem afivelado, e eu caí de cabeça. Poderia ter ficado tetraplégico, também, mas não fiquei. E fiquei paraplégico, né, foi na região de T10 até L1. E na frente do carro toda entrou comigo. com o meu corpo todo, foi um impacto muito forte. Daí eu já percebi que tinha ficado paraplégico, tentei iniciar algumas atividades, mas com o passar do tempo a gente percebeu que não tinha resposta, já não conseguia de fato mexer as pernas. E aí voltei dois anos depois à atividade profissional, né, depois me integrei com a comissão da OAB do Ceará, como membro e hoje estou como presidente, e às atividades que a gente fazia muito esporte, né? Eu fazia antes, como pessoa sem deficiência. e agora paradesporto, natação e tudo. E em 2017 eu nadei essa prova. Eu fiz a parte da natação dessa prova. eu entrei e consegui concluir, né, a prova que eu faria em 2014, não consegui, mas eu fiz uma grande dieta, porque realmente você ganha peso, enfim… é uma série de questões que envolvem a questão do luto: aquele Emerson que era antes sem deficiência e agora com deficiência, então até você se aceitar e tal. Mas assim, foi um processo lento e gradual mas foi muito enriquecedor, foi muito importante.

{Volta narração da apresentadora}

A entrevista já estava terminando, mas a gente continuou conversando. O Emerson é bom de papo, c já notou, né? Eu tomando meu café daqui, ele tomando o café dele de lá. E ele me contou coisas que eu não esperava…

{Fala x Emerson} Eu tenho três fatores de vida que me definem muito:

{Volta narração da apresentadora} Um deles, claro, o acidente, mas antes… presenciou o atentado de 11 de setembro:

{Fala x Emerson} Eu estava em Manhattan lá no dia e por uma mudança de agenda, dois dias antes eu deixei de ir pras torres gêmeas naquele 11 de setembro, que era uma terça-feira, e eu vi lá comé que foi… vi as torres caindo… Eu não consegui voltar pro Brasil, só depois de alguns dias, porque o espaço aéreo tava fechado. Então isso foi uma experiência de vida que foi muito marcante. Outra foi o nosso filho mais velho, o primeiro, que teve câncer aos 5 anos..

{Volta narração da apresentadora} E, do dia pra noite, precisaram mudar pra São Paulo:

{Fala x Emerson} e isso foi uma atividade assim, uma situação…. que a gente teve que ta preparado assim para tudo, né, quando a gente viu a raridade do câncer que teve e a raridade do câncer que era, ninguém sabia… e, após a cirurgia, teve que passar por quimioterapia muito agressiva, foi feita lá no Sírio-Libanês. Mas assim… a gente conviveu bastante com essa sensação de que a qualquer momento a gente pode perder…. e assim…. <chora> desculpa…

{Apresentadora} fica à vontade… aqui é o lugar pra isso, fica super à vontade…

{Fala x Emerson, que continua chorando} até hoje… se alguém me pergunta… o que foi difícil mesmo foi isso, cara. Foi isso, foi difícil demais. a gente teve a sorte, graças à medicina e graças aos céus, ao que for, de ter vencido isso. Mas assim… se teve uma coisa que me forjou mesmo como alguém forte ou provou pra mim que eu tinha uma força que eu não sabia foi isso. foi muito difícil, cara, foi muito difícil.

{Apresentadora} Isso foi antes ou depois do seu acidente?

{Emerson} Foi bem antes, foi em 2008. Já faz 12 anos. Então… Quando as pessoas me perguntam eu até rio um pouco, eu digo “Pô, cara, esse luto aí não foi nada comparado ao que a gente viveu entre 2008 e 2010.” E depois, porque obviamente quem passa por um processo desse, mesmo tendo conseguido a cura você tem que ficar acompanhando. Um ano, dois anos, três anos, cinco anos. Até que chegou aos 10 anos e tudo… E hoje ele tem…. <respira fundo>

{Volta narração da apresentadora}

….tem 17 anos.

{TRILHA SONORA TRANQUILA, MISTURADA A SONS DE AVIÃO E TREM}

{Volta narração da apresentadora}

Espaço aberto agora pro nosso colunista, Tom Almeida, criador do movimento inFINITO, que promove conversas sinceras sobre o viver e o morrer. Como eu disse no episódio passado, a partir de agora, nesta temporada, o Tom chega junto nessas edições da série Como lidar.

Bem-vindo, Tom!

{Fala x Tom} Brigado, Ju! Feliz de ta aqui de novo, participando dessa nova conversa.

{Apresentadora} Eu achei que você tinha tudo a ver com essa nossa conversa nessa série e eu queria começar falando contigo nesse episódio a respeito de um aspecto que me chamou bastante a atenção na fala do Emerson que é a questão do luto pela pessoa que ele deixou de ser depois daquele acidente. E de fato, né, as nossas perdas, ainda que não envolvam morte, fazem com que a gente passe a ser uma outra pessoa, né, Tom?

{Tom} Exatamente, todas as experiências que marcam a nossa vida, sejam aspectos positivos, como aspectos mais desafiadores, a gente acaba passando por uma grande transformação. Por exemplo, quando a gente ta passando por um luto, seja um luto pela perda de alguém que a gente ama ou o luto de algo que a gente não tem mais, nesse processo de luto acontece uma construção de significado, e o que faz parte dessa construção de significado é a revisão da identidade. Tanto primeiro de você olhar, falar “nunca mais eu vou ser o mesmo que era com aquela pessoa” / “nunca mais vou ser o mesmo como eu era”, então tem esse olhar que dói, de se reconhecer como “eu não sou isso mais”, e ao mesmo tempo neste processo, né, que o luto é um processo, também acaba acontecendo uma descoberta das nossas forças, das nossas vulnerabilidades, então vou me reconhecendo, vou entendendo quem eu sou nesse novo lugar. Conforme vou fazendo essa passagem, essa transformação eu vou entendendo e vou me tornando essa nova pessoa.

{Apresentadora} Pra mim, particularmente, eu sou uma pessoa de personalidade assim, um pouquinho controladora, trato na terapia (risos dos dois), mas pra mim particularmente, quando eu me dei conta de que mudar é a regra, eu acho que fiquei um pouco mais calma nesse sentido. A gente muda muito, tem o luto do que a gente era antes da pandemia e do que a gente é agora, né… Aliás, me lembrei agora do médico paliativista americano BJ Miller, que fala um pouquinho sobre isso naquele documentário A Partida Final. BJ que você conhece, inclusive, né, ele sofreu um acidente ainda bem jovem, né?

{Tom} Exatamente. Isso inclusive determinou o que ele faz, o trabalho que ele faz hoje. Porque ele trabalha em cuidados paliativos, ele cuida de pacientes com doenças graves e terminais. E ele sofreu um acidente que ele perdeu um braço e as duas pernas. E daí tem uma fala dele que ele conta que durante todo o processo, que era muito sofrido, que ele ficava sempre se comparando com o que era ele sem aqueles membros que ele perdeu. Até que um dia ele entendeu que isso não existia mais, que ele era aquilo. Esse era o todo. Ele não era nada menos alguma coisa. Isso foi quase que um gatilho de transformação pra ele se entender como essa nova pessoa e seguir a caminhada dele. Então é bem forte essa fala e ele vai ta no Festival inFINITO esse ano com a gente.

{Apresentadora} Luxuoso, né?

{Tom} Muito

{Apresentadora} Festival inFINITO que está marcado para os dias 3 e 4 de outubro, informações no Instagram, né, Tom?

{Tom} Isso, @Infinito.etc

{Apresentadora} Maravilha, brigada, até daqui a 15 dias!

{Tom} Até!

{TRILHA FINAL}

A gente vai se aproximando do fim do episódio dessa semana, e ainda dentro do tema de hoje eu queria trazer algumas reflexões. C lembra que a gente falou que aproximadamente um quarto da população brasileira tem algum grau de deficiência? Viver numa sociedade inclusiva é importante por inúmeras razões, mas c já pensou que também as econômicas? Tipo.. Se você tem uma loja, por exemplo, e não tem acessibilidade, você deixa de vender pra uma parcela considerável de clientes em potencial. Se você tem poder de contratação, seja na área que for, considere avaliar se existe alguma pessoa com deficiência qualificada pra alguma vaga, ou que até possa ser treinada pro cargo. E não só aquelas administrativas ou mecânicas, não, ta? Não por uma questão de preencher cota, mas porque diversidade sempre traz ganhos, representatividade importa e tem muita gente competente precisando só de uma chance pra poder mostrar a que veio.

Se você, assim como eu, é produtor de conteúdo, ta mais do que na hora de agregar todas as ferramentas que proporcionam o acesso ao seu material por todos. O Finitude, mesmo, não ta em dia com esses recursos, não — e é por isso que a partir de hoje a gente toma vergonha na cara e começa a postar o roteiro na íntegra, por escrito, vai ficar o link na descrição deste episódio aí no seu tocador de podcasts preferido e aí as pessoas com deficiência auditiva também vão poder passar a acompanhar o nosso conteúdo. Vamos adaptar as nossas redes sociais ao máximo também, talvez a gente escorregue um pouquinho em algum momento, mas a gente conta com você, que é ouvinte do Finitude e PcD, pra apontar eventuais falhas, ta bom?

Última coisa e eu juro que paro de falar hoje, gente! Risos

Eu conheci um podcast suuuper bacana esses dias e queria recomendar: chama Introvertendo. Um podcast sobre autismo feito por autistas. São conversas sobre saúde mental, cidadania, cultura e inclusão. Já ouvi alguns episódios e já aprendi demais, demais, demais. Vale super a pena. Então, chama Introvertendo, pode buscar aí também na sua plataforma de áudio favorita.

E é isso por hoje.

To te esperando lá no Instagram finitudepodcast e no twitter podcastfinitude. Se você gostou desse episódio, compartilha, indica pros amigos, que tal?

Um beijo pra você, até semana que vem!

{Vinheta em que uma voz feminina diz: este podcast é apresentado por b9.com.br}

--

--