Finitude Podcast — Como lidar com alguém com câncer

Finitude Podcast
24 min readSep 29, 2020

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O diagnóstico de um câncer é algo que absolutamente ninguém quer ouvir. Por muito tempo, este momento foi encarado como uma sentença de morte. Não é mais. Ou, pelo menos, não necessariamente. E o que existe dali até a terminalidade de fato é vida. A nossa entrevistada de hoje é a prova (muito) viva disso: Ana Michelle Soares — ou AnaMi, como é mais conhecida. Convive há nove anos com um câncer metastático e neste episódio conta pra gente quais são as dores que existem nesta jornada. Não aquelas de agulhas, nem dos efeitos das quimioterapias; mas as que a sociedade impõe.

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O podcast Finitude foi criado por Renan Sukevicius e é apresentado por Juliana Dantas. O Finitude está no Instagram (@finitudepodcast) e no Twitter (@podcastfinitude). Para ser um apoiador, acesse www.apoia.se/finitudepodcast. O Finitude é um podcast da Rádio Guarda-chuva, que é a primeira rede brasileira dedicada exclusivamente a podcasts jornalísticos. O Finitude também é associado à rede B9. Episódios novos no seu tocador toda terça-feira. Você pode encontrá-los no Spotify, Orelo, Deezer, Apple Podcasts, Google Podcasts e demais agregadores. Para contatos comerciais, escreva para finitudepodcast@gmail.com.

Trilha sonora:

“Odyssey” by Kevin MacLeod (https://incompetech.com ) License: CC BY (http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/ ) Music from https://filmmusic.io “Industrious Ferret” by Kevin MacLeod (https://incompetech.com) License: CC BY (http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/ ) Music from https://filmmusic.io

Music from https://filmmusic.io

“Every Passing Second” by Otis Galloway ()

License: CC BY (http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/ )

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{Vinheta sonora que diz: este podcast é uma produção da Rádio Guarda-chuva. Jornalismo para quem gosta de ouvir — barulho de guarda-chuva abrindo e de chuva caindo}

Narração da apresentadora:

Lá vem o Outubro Rosa… Descendo a ladeira… :)

E, com ele, um caminhão cheeeio de clichês.

Claro, a conscientização pelo diagnóstico precoce é fundamental, sem dúvida. O acesso ao tratamento de qualidade é não só importante, como um direito de todo cidadão, de toda cidadã.

Mas, ah… é um mês que também é especialmente propício para que quem tem um diagnóstico de câncer de mama sofra novas dores. E aqui eu não to falando de agulha nem de efeito colateral de quimioterapia, não. To falando de como a gente não sabe se comportar diante de quem tá em tratamento. E isso vale pra quem tem qualquer tipo da doença.

Eu sou Juliana Dantas e este é o Finitude.

Seja bem-vinda, seja bem-vindo a mais um episódio da série “Como lidar”: “Como lidar com alguém com câncer”.

{TRILHA}

Hoje, com o auxílio luxuoso de Ana Michelle Soares. Ou, simplesmente, AnaMi.

{TRILHA DE ROCK LEVE}

Jornalista. Escritora. E que virou digital influencer. Ela já fugiu com o circo (tipo… literalmente mesmo)… Ama poesia, arte, viagens. E, além disso, convive com um câncer metastático.

O primeiro diagnóstico chegou aos 28 anos: câncer de mama. Mastectomia, quimioterapia, radioterapia. Ufa.

Só que aí aos 32, novas — e não boas — notícias davam conta de que a doença havia atingido também o fígado e, dessa vez, sem chance de cura.

A jornada dela nos mostra que cura é importante, claro, mas não é tudo.

E que o câncer muda, sim, a vida, mas ninguém é resumido a uma enfermidade.

A AnaMi é muitas coisas — entre elas, uma paciente em tratamento de um câncer incurável. Em busca de qualidade de vida pelo tempo que a vida tiver.

Já são nove anos deste caminho. Em poucas semanas, ela completará 38 anos.

Ana Michelle:

Eu sou uma sagitariana, com lua e sol em Sagitário e um ascendente em Aquário, que… para quem entende isso já vai entender que é uma combinação muito bombástica, mas daí eu vou explicar para você: significa uma pessoa que tem uma tendência muito grande a metida a revolucionária, a idealista, meio transgressora, um pouco metida a justiceira… Risos. Então, eu acho que eu tenho um pouco essas características aí, eu me reconheço um pouco nessa questão de tentar ser alguém que tenta transformar o mundo…

Narração: Tenta e vem conseguindo. Não vou entrar aqui no mérito do alinhamento dos planetas, mas num alinhamento de ideias. A AnaMi tem sido uma voz importante numa virada de mesa que já tava mais do que na hora de acontecer: a de fincar o pé no fato de que o protagonismo deve ser da pessoa que está na condição de paciente. E não do médico ou de que quem quer que seja responsável pelo tratamento. Uma boa parte da história da vida dela e também de como ela atua nessa mudança de prisma tá no livro “Enquanto eu respirar”, publicado em 2019 pela Editora Sextante. E além do marcador de página o pessoal da editora bem que poderia se preocupar em mandar uma caixinha de lenço pra gente, né? Porque olha… Coisa mais linda, mais emocionante. Ajuda a gente a colocar a vida em perspectiva. A partir da nossa régua mesmo, não da dela.

Tudo isso pra dizer que: não é minha pretensão hoje aqui contar toda a trajetória de vida da AnaMi. Você que já ta nessa tribo faz algum tempo, deve conhecer — como eu disse, no meio disso tudo ela acabou virando uma digital influencer MESMO.. São mais de 80 mil seguidores no Instagram @paliativaS — assim mesmo, no plural. Criado com a Renata, que morreu com plena dignidade, há pouco mais de 2 anos, sob os cuidados paliativos da Dra Claudia Inhaia, do Pallicast — pra quem se interessa por cuidados paliativos, vale a pena dar uma chegadinha de ouvido por lá também depois aqui do Fini.

A AnaMi já deu dezenas de entrevistas, pra Globo, pra Folha, pra tudo quanto é lugar. Palestra, então, nem se fala. E ela tem mesmo muito a ensinar.

É por isso que eu não conseguia imaginar pessoa melhor pra ta aqui hoje neste episódio.

E como acontece em todos desta série “Como lidar”, tem listinha, sim, senhoras e senhores.

Mas antes, recados:

O Finitude é um podcast independente que conta com a sua ajuda pra seguir: em apoia.se/finitudepodcast você encontra como colaborar e passar a receber a nossa newsletter semanal. Se quiser fechar com a gente uma parceria comercial, pode escrever pra finitudepodcast@gmail.com pra gente conversar :)

O Finitude, você sabe, é um dos podcasts de fundação da Rádio Guarda-chuva, que é a primeira rede brasileira de podcasts exclusivamente jornalísticos. Um deles, o Vida de Jornalista, do Rodrigo Alves, sobre bastidores de produções e coberturas. E agora vai rolar uma espécie de matrioska de podcast, porque estamos no Finitude, pra dar o recado do Vida de Jornalista, que vai falar sobre o que? O Finitude também. Eu vou parar de me enrolar aqui e deixar o Rodrigo contar. Pois não, senhor.

Voz do jornalista Rodrigo Alves:

Oi, Juliana! Tudo bem? Deixa eu convidar você e os ouvintes do Finitude pra festa de despedida da temporada do Vida de Jornalista. Uma festa que ta durando sete dias, porque nesta semana, de segunda até domingo tem episódio do Vida todo dia, numa série com bastidores de podcast de jornalismo. O Fini ta lá, inclusive! Tem Praia dos Ossos, tem Faxina, tem História Preta, episódios curtinhos, de 15 minutos, pra gente entender como são feitos alguns dos melhores podcasts de jornalismo que estão por aí. Beleza? Um beijo, Juliana!

Volta narradora: Ai, vai ser um presente ouvir o Fini por lá. To ansiosa! Beijo, Rodrigo!

Agora, sim, espaço aberto pra nossa listinha. Hoje, com orientações sobre Como lidar com alguém com câncer.

Número 1: evite glamourizar uma história que não é sua:

AnaMi:

Essas pressões ou ser guerreira e heroína e toda essa coisa chata… o quanto isso aprisiona a gente, né, ainda mais dentro de um sofrimento que a gente tá vivendo. Então, eu sempre tentei não me submeter a isso, né, então eu vi muito do meu idealismo aí, né, acho que foi daí que começou essa minha vontade de me expressar e de falar o que todo paciente já estava acostumado demais a abaixar a cabeça e achar que tinha que se encaixar mais aquele padrão

Narradora:

2. Não reduza a questão à perfumaria:

A minha crítica, até, em relação às campanhas de Outubro Rosa é que a maioria das campanhas elas só querem falar de uma mulher que se ela tiver maquiada… “Vem aqui que eu vou te maquiar, vou amarrar lenço na cabeça e pronto! A sua autoestima está recuperada!” E eu acho que isso não é autoestima, isso é um momento estético (risos) de a pessoa poder se olhar novamente achar que “olha, tá bom, ficou bom, né?” E aí para a sociedade é uma passação de pano completa, né, que fala “não, se você está bonita… você não tem mais o que reclamar na sua vida!” Mas ninguém pergunta por que que ela estava reclamando, né, por que que ela não se identificada mais com aquela imagem no espelho que de repente ou tá careca ou tá com cabelo ralo ou que tá com cabelo comprido, mas tá com o rosto cheinho por causa de corticóide… ou porque não se reconhece mais naquele corpo cheio de cicatriz… Ninguém pergunta, né, a profundidade dessa dor, mas se você consegue passar uma maquiagem nela e ela tá bonita naquele recorte temporal momentâneo, então ela não tem mais motivo nenhum para reclamar — e é dentro disso que muitas mulheres acabam se sentindo obrigadas a se encaixar, né? E aí, enfim, né, se a gente tiver que puxar mais esse fio aí a gente vai falar de uma sociedade que é assim, né? A mulher, se ela está bonita e bem vestida…. ela não sofre! Porque, afinal de contas, a gente só quer isso da vida, né, toda a nossa expectativa de vida é essa: ser perfeita. E aí, sendo perfeita, não há dor nenhuma que seja legitimada pela sociedade. E aí dentro desse universo feminino de paciente, isso tem uma dimensão muito grotesca, mesmo, né? “O cabelo cresce”, né? Acho que é uma das primeiras frases que a gente ouve quando a gente diagnosticada e a gente faz aquela sutil reclamação, né, ou aquele sutil desabafo que diz assim: “poxa, vou ficar careca por causa da quimioterapia…” Tudo o que nos oferecem é essa possibilidade de que nosso cabelo cresce. O que oferecem pra gente é “você não tem que ficar triste por isso porque isso é ser fútil, então não seja fútil porque o importante é a sua cura”.

Narração:

3. Lembre-se de que é mito que o câncer só acomete pessoas mais velhas:

AnaMi:

Para mim, e eu vejo que muitas pacientes que são jovens, elas ouvem muito a questão de “Nossa, mas tão nova!” O câncer, ele não fica olhando lá para o seu RG para saber se a data de nascimento. É algo que acontece, que faz parte da vida. Então não tem a ver com a idade e o “tão nova” ou “tão velha”.. Que que significa isso, né, enfim… Então, se eu sou nova eu sou imune a qualquer tipo de doença? Eu acho que precisa desconstruir um pouco isso aí, mas é algo muito comum de a gente ouvir, até mesmo dos profissionais da área de saúde, né, é muito comum quando eu vou fazer hemograma no laboratório, a pessoa sente alguma curiosidade por me olhar, né, aí ver que eu tenho uma aparência jovem fala “Nossa, mas tão nova…” e aí a gente se sente até um… “Poxa, né, que será que eu fiz de errado, né, porque, nossa, será que é uma doença que não dá em gente jovem? Só eu fui premiada?” E, não, né, câncer de mama tem um percentual muito grande de mulheres que estão descobrindo cada vez mais jovens a doença.

Narração:

4. Busque não criar ou compartilhar teorias sem embasamento científico:

AnaMi:

Eu acho que tem muito uma fala, muito rasa também, que tenta levar a gente para uma culpa, né, de “É aquela mágoa lá”… “Nossa, puxa seu casamento fez isso com você, né?”…“Menina, você precisa se libertar disso aí!” Então, como se a gente tivesse provocado isso na gente de uma maneira quase que proposital e a gente tivesse o poder de resolver isso como num passe de mágica, porque basta eu ir lá, sei lá, no meu chefe que me causou tanto sofrimento e falar: “Chefe, eu te liberto, eu te perdoo, tá tudo bem” e eu estarei curada no dia seguinte. E é o que causa ainda mais sofrimento, porque além de você tá doente, além de você ter que lidar com tudo isso, você ainda tem que lidar com o fato de que as pessoas te olham como se você fosse culpada da sua própria dor. E aí eu sempre falo para os pacientes quando eles vêm com essa queixa para mim, né… “Nossa, será que eu….? Porque me disseram que se eu tivesse feito não sei o que, se eu tivesse falado não sei o que, eu não teria ‘pegado’, câncer”, né? Eu acho que é uma expressão que também não faz o menor sentido, né, você não pega câncer como você pega Covid. Câncer ele se desenvolve no seu corpo e não existe ainda um racional para isso, né? Ninguém ainda me conseguiu mostrar ali com evidência científica de que só tem câncer quem faz isso, quem tem determinado comportamento. Senão, nossa, todas as pessoas que experimentam algum tipo de desconforto na vida elas seriam pessoas doentes o tempo inteiro. Então, acho que não dá para gente ir o tempo inteiro levar para essa fala rasa de que paciente é culpado porque as emoções dele provocaram isso.

Narração:

Agora pega essa…

AnaMi:

…outro dia até no laboratório, que é algo até que eu quero escrever sobre isso em breve, uma técnica de enfermagem, mesmo, né, é uma profissional da área de saúde… ela montou todo um racional ali para mim, né, dizendo que “o câncer, ele só tinha espalhado, porque…. como ele nasce na medula….” Xis, assim, não vou conseguir explicar de onde vem esse raciocínio dela, mas ela me disse que “como nasce na medula, vai direto para o cérebro, então do cérebro se você tem as emoções muito complicadas, o cérebro espalha tudo isso para o seu corpo” e é algo que me deixa absolutamente… {tempo de silêncio}

Narração:

….absolutamente sem palavras…

AnaMi:

…aí no final ele ainda falou, né, “mas fica com Deus, né, ele sabe o que faz”. Aí eu respondi para ela: “ainda bem, porque ainda bem…” porque se eu tivesse que depender disso, né? “de ”Nossa, meu Deus, meu cérebro espalhou para todos os lugares”, é uma coisa muito louca que as pessoas pensam… Eu nunca vou entender a raiz disso, mas é algo que a gente pode tomar cuidado, né, ao tentar falar sobre pra um paciente. Porque não ajuda… você tentar arrumar uma explicação para me salvar nesse sentido, né, eu sei que… eu quero acreditar pelo menos ninguém sai de casa com o objetivo de magoar outra pessoa… “Ah, hoje eu saí de casa porque eu quero falar para uma paciente que a culpa é dela por ela ter câncer”. Acho que ninguém faz isso por maldade, eu quero muito acreditar nessa humanidade, mas é importante que a pessoa, se ela não sabe sobre a doença, se ela não compreende o nível daqueles sofrimento que ela nos presenteia o seu silêncio que tá tudo certo. Não precisa criar uma super teoria, que no final sempre acaba com essa equação de que eu sou culpada por ter câncer e se eu quiser não ter câncer é só eu acionar um botãozinho dentro de mim que tu não vai tá perfeito maravilhoso do dia pra noite.

Narração:

5. Antes de falar que “fulano perdeu a luta contra o câncer”, reflita se você já ouviu ou viu por aí uma manchete “fulano perdeu a luta contra a hipertensão”.

AnaMi:

Até quando eu vejo matérias, quando fala as coisas de perdeu pro câncer eu sempre deixo a minha contribuição, né, pro jornalista no caso ter a chance de evoluir quando ser humano, de entender que ninguém perde, né, para uma doença, porque a doença morre junto com a pessoa, mas enfim… Eu acho que tem, sim, essa coisa de… eu acho que tem muito a ver com esse feminino, mesmo, porque eu não vejo tanto todas essas coisas relacionadas as heroínas e ser mitológico quando é até relacionado com o paciente homem, mesmo, né. Então tem sempre essa coisa da mulher… ela tem que ser guerreira, ela tem ela tem que ser heroína… tem que ser lutadora. É a guerra, é a batalha, é esse monte de coisa para justificar uma coisa que, na verdade, câncer faz parte da vida, gente! Tem gente que tem câncer, tem gente tem depressão, tem gente que tem doença cardiovascular, tem pressão alta, gente que tem diabetes… Faz parte da vida, né? Mas é sempre relacionada ao câncer porque eu acho que é a doença que causa medo, né? E até as pessoas pouco informadas, porque, na verdade são as doenças relacionadas ao sistema circulatório que mais matam, né, nem é o câncer — ainda talvez lá em 2030 seja a doença que mais mata, mas hoje em dia ainda não é. Mas a gente também não fala, né, “perdeu para o coração”, né, então… risos É muito distorcido e é justamente por isso que eu tento desmistificar isso, né, de que câncer é uma doença como qualquer outra, que tem ali a sua condição de bastante sofrimento, de muitas coisas envolvidas, muitos sofrimentos envolvidos, mas que faz parte da vida, ainda assim. Então, eu não luto contra câncer, eu não luto contra doença nenhuma; eu apenas vivo. E, na minha vida, tem isso. No meu caso tenho câncer, que eu faço tratamento, eu continuo vivendo minha vida, fazendo as minhas coisas, tô tentando ser um ser que ta habitando esse tempo aqui nessa vida aqui, tô tentando ser alguém que seja útil para um todo. E é isso. Pra mim, vida é isso. Vida não é ficar guerreando e deixando que tudo gravite em torno da doença que eu tenho porque não é verdade, né? Paciente que tá doente ele quer falar sobre vida, né, quer ver a sua dor legitimada, assim, mas ele quer continuar vivendo, a gente quer continuar vivendo. Essa é a grande… a grande beleza disso, né? Por isso que a gente não perde: uma pessoa que ela consegue viver bem, à disposição da vida por um dia com câncer, ela para mim é uma grande vitoriosa, porque realmente é uma doença que faz você experimentar o mais profundo de sofrimento — e, por que não, de humanidade? Então, para mim, são sempre pessoas que venceram Por que conseguiram lidar com isso conseguir idade de cabeça erguida, enfim.

Narração:

Número seis? Tente fugir da lógica das chamadas “histórias de superação”.

AnaMi:

Existe, sim, um certo desconforto porque até pouco tempo atrás só existia espaço para essa paciente que tem ali o resultado da remissão, né, todo mundo só olhava nessa direção, porque era só essa história que importava. Porque outra história era triste. E aí, eu acho que essa minha geração de pacientes que estão descobrindo câncer de mama metastático, a gente já tá convivendo com uma realidade diferente em que as pacientes elas vivem muito tempo. Elas têm acesso a tratamento, e quando têm acesso elas conseguem aí ter uma vida com qualidade e as suas dores muito bem manejadas, é uma vida que vale muito a pena ser vivida. E então eu comecei a ver que existia um desconforto de “ué, por que que só olha para um lado? Então a minha história é uma história que não vale a pena ser ouvida?” Aí acho que para essas questões que eu comecei a levantar mesmo quando eu percebi que não havia espaço. Então, para mim, muitas campanhas antigas, né, antes de virar uma coisa meio pop, essa coisa de Instagram e tudo mais, eu recebi muitas negativas, assim, do tipo “ah, ahhhh…” Sabe aquela coisinha de penas, assim, de “Ahhhh, ta…. a gente queria meninas que já terminaram o tratamento mesmo…” / “Ah, poxa, né, a sua história é um pouco triste, né” Risos. Então não é uma história triste de uma menina que tá vivendo, que tá 11 anos convivendo com câncer de mama metastático? Isso deveria ser absolutamente celebrado por todos os elos dessa cadeia oncológica, porque não é esse o objetivo? Quando não tiver a cura do câncer, não tiver a cura, você não conseguia diagnosticar precocemente — e a gente tá falando do Brasil, né, no Brasil, o diagnóstico precoce ainda é um pouco… Daí têm muitos obstáculos para a gente transcender…. Então, se não tem cura o câncer, aí a indústria tá trabalhando hoje justamente para que a gente conviva muito tempo com a doença… Pra que seja uma doença crônica… Talvez seja este o futuro da oncologia. Então, o paciente crônico ele não tem a história dele legitimada, é uma história triste? Mas tá todo mundo trabalhando para que você viva mais e só quando você tá vivendo mais a sua história não é boa o suficiente? Só é boa o suficiente se você não trata mais? Então, veja que é até paradoxo, assim, da oncologia. Porque a conta não fecha para mim.

Não dá mais para a gente ignorar que tem um lado da história, mas tem o outra também. E que todas as histórias importam. A paciente que está curada, incrível, meu Deus, maravilhoso, que poxa, que viva muito tempo. A paciente que tá tentando ali, ainda em tratamento, que não sabe ainda qual estágio da doença? Vamos cuidar dessa pessoa para que ela consiga ser o manejo da dor dela seja desde o começo, para ela não precise enfrentar tantas questões emocionais depois do tratamento. Pra paciente que está em tratamento contínuo, com metástase, gente, vamo olhar para ela também, porque olha que incrível, ela tá vivendo! Ela precisa de cuidados paliativos, ela precisa ter todas as suas dores bem administradas também. A gente precisa olhar pras células saudáveis! A gente é um corpo doente, mas a gente é um corpo saudável, também, né. Cabe tudo dentro de um corpo só. Então, a gente tem que olhar para esses dois lados. Cabe todo mundo e dá para olhar para todo mundo. Todas as histórias para mim são inspiradoras e a própria indústria, as marcas, né, principalmente as marcas femininas que têm muito essa pegada de querer as pacientes, as “survivors”, elas têm que olhar todo mundo, porque se a gente tá falando de um futuro oncológico em que as pessoas vivem mais, então tem que caber todo mundo nessa conta, todas as histórias importam para mim.

Narração:

7. Quando você for fazer uma doação pensando em ajudar pacientes com câncer, pense que quem vai receber é uma PESSOA.

AnaMi:

Esse vai ser o meu nono Outubro Rosa e eu acho que não teve nenhum Outubro Rosa em que eu não tenha recebido coisa quase para vencer ou produtos que não faziam o menor sentido dentro de uma cesta de paciente que faz tratamento… Então, nossa, as coisas mais bizarras que você imaginar eu já vivi, assim, nessa loucura de Outubro Rosa. Ai, lenços que não são possíveis de você amarrar na cabeça, assim, é um clássico. Então as pessoas colocam lencinho que é mais barato, mais quadradinho, pequenininho… Mas não dá pra você amarrar na sua cabeça, você faz o que com esse lenço? Não sei, eu usava como lencinho pra botar no centro da minha mesa, assim, porque era a única serventia. Eu botava uma florzinha, assim, ficava ótimo. Mas não sei, eram umas coisas muito equivocadas, assim…

Narração:

E quando algumas marcas de beleza doam produtos que estão perto da data de vencimento, hein?

AnaMi:

….cosméticos, a gente tem muita restrição quando a gente tá em tratamento né? Têm coisas que não dá para usar. A gente tá com a pele mais sensível, a gente faz quimioterapia, têm várias questões de cuidado aí para você dar esse tipo de produto para paciente. E era uma coisa muito sem critério, assim, eles colocam o que sobrou das vendas, sabe? Aí doa, aí fala assim “nossa, doamos um kit incrível para paciente, maravilhoso…” Quando vai ver, coisas que a gente não consegue usar porque não tem cabimento usar aquilo…

Narração:

A AnaMi vira e mexe é responsável por fazer a triagem de doações de lenços…

AnaMi:

….eu vou lavar eu vou botar tudo no saquinho, higienizado para mandar pelo hospitais ou pros pacientes. Era um show de horror, assim, porque as pessoas… elas…. Olha, elas só não botaram papel higiênico ainda dentro de um cesto, porque todo o resto elas já colocaram nessas coisas de doação. Lenço rasgado é um clássico, lenço mofado, que mesmo a gente lavando, sabe aquela coisa que tava lá no fundo, do fundo do armário.. não dá para você colocar isso na cabeça de um paciente fazendo quimioterapia. Isso é descarte, não é doação. Doação, para mim, é você pegar algo que você usaria mas que de repente você quer doar porque não faz mais sentido para você, mas está em perfeito estado e você quer doar para alguém para que usufrua daquilo, né? Foi um show de horror, assim, eu lembro que foi um dia que eu nessa campanha maior que eu fiz, foi em 2017, eu sentei e chorei com a minha irmã. Ela me ajudando a fazer a seleção, eu comecei a chorar, porque eu falei “cara, sei lá, o ser humano deu errado, assim, tem que resetar e começar de novo”. Que absurdo, assim… Foi um momento muito triste da minha vida ali, de ter feito uma campanha com tanto coração e descobrir que as pessoas jogavam qualquer coisa…. AH! Resto de tecido! Resto de tecido é um clássico também! Sabe aquele resto de tecido de alguma coisa que fez, ele sobrou, a pessoa joga lá como se fosse lenço…? E não é, não faz sentido isso. Para mim, gentileza é outra coisa, né, e eu acho que paciente tem isso também, né, que é algo que eu fico tentando desconstruir na cabeça deles, que eles não precisam, né, ser gado desse tipo de coisa. De que alguém vai lá e dá as coisas para você e você só tem que ser grata e não vai falar nada, porque a gente tem que ter grata. Cara, a gente tem que ser grato a algo que faça sentido para você ali, né, alg que tenha alguma utilidade real para você. Quando alguém está realmente te dando amor ali, aí você é grato. Mas se alguém jogando lixo em você, desculpa, eu não tô conseguindo ainda ver um jeito de ser grato a isso, né, mas os pacientes eles ocupam esse lugar de - isso diz muito, até, da nossa sociedade, né as pessoas que tão em vulnerabilidade, elas pensam que elas têm que aceitar. E tem muita ONG que não as protege disso. E aí isso acaba colocando ela também nesse espaço de “você tem que aceitar porque, nossa este é o máximo que eu posso fazer por você. E fica grata, viu?” E é muito triste, porque a pessoa já tá experimentando uma vulnerabilidade muito grande, ela acaba entrando nesse espaço mesmo de aceitar qualquer coisa porque às vezes é tudo que ela pode ter.

Narração:

O oitavo e último item da nossa listinha de hoje é: mantenha a pessoa que você ama na sua vida.

AnaMi:

É você tá disponível para pessoa nesse sentido de olhar para ela e entender que o câncer faz parte da vida dela, mas que não é ela, né? Eu não sou câncer que eu tenho, né? Eu sou uma pessoa que tem câncer, não é o contrário. Então, eu amo as minhas amigas porque eu consegui construir isso e elas tavam muito abertas a compreender isso, e elas podiam continuar agindo normalmente comigo, elas podiam continuar contando que o maior problema da vida delas hoje é que o boy não respondeu a mensagem, porque acho que tem aquela coisa de “Ai, meu Deus, ela está enfrentando o maior sofrimento do mundo e eu estou aqui sofrendo porque a pessoa não respondeu minha mensagem”… essa coisa de querer comparar os sofrimentos. Cara, se professou a maior sofrimento da vida dela nesse momento é esse, eu vou amar saber, porque aí eu vou me sentir participando na vida das pessoas ainda, né, não vou me sentir alguém que precisa ser blindada da vida, né, blindada das relações. Então não, para você agregar na minha vida hoje você tem que olhar para mim e me ver; não olhar para mim chegar câncer. Aí você tá me ajudando muito. E aí você me mostra que vale muito a pena continuar aqui porque realmente eu sou parte da sua humanidade ainda.

Narração:

A AnaMi conta que ao longo dessa jornada ela tem conhecido pessoas incríveis… e também visto essas pessoas incríveis partir. Mas isso não faz com que ela se entregue menos às relações:

AnaMi:

Eu aprendi nesse tempo que o legal é você tá perto das pessoas hoje. Sabe? Quando você traz todas as suas relações para o hoje, não fica ponta solta nenhuma. Então, todas as minhas amigas que morreram, todas as pessoas que eu acompanhei ali no fim da vida delas, eu pude o tempo inteiro falar para elas o quanto tava sendo incrível esse tempo que a gente tava compartilhando juntos. Então, a gente pôde aprender umas com as outras, a gente pôde falar tudo, a gente pôde tentar fazer a outra crescer, tentar resolver suas questões, a gente foi ouvindo, a gente foi colo, a gente vai coração aberto para umas para as outras também e por isso essa partida ela vem carregada de um luto diferente, porque é uma saudade mesmo, né, uma saudade da presença física. Mas aí, ao mesmo tempo em que eu sinto saudade, eu penso “Nossa, olha o privilégio, nossa, que incrível foi ter essa pessoa perto da minha vida esse tempo” Então eu sofro, lógico, como qualquer pessoa mas eu acho que eu sou tão inteira nas relações que eu tenho que só sobra saudade mesmo, o amor…

Narração:

Essa saudade e esse amor vivem se multiplicando. Os mais intensos, com a Renata — aquela, que faz do perfil da AnaMi no Instagram um lugar plural: @paliatiVAS. A Renata é a razão de ela ter ido ver o pôr-do-sol de um mirante em Atibaia, no interior de São Paulo, e também de ter ido rir disso tudo em Paris. Tudo entre uma quimioterapia e outra. É a razão, também, de a gente começar a ouvir essa música agora….

{TOCA COLDPLAY — YELLOW}

…um amor que é sempre presente, nessas histórias que eu vivi com essas pessoas.. Então… faz parte, né, eu tento estar muito inteira nas minhas relações hoje, porque um dia a saudade vai ser a saudade de mim. Então eu gosto de estar inteira, também, para que as pessoas possam levar de mim a garantia de que tudo que foi vivido foi incrivelmente vivido em toda sua intensidade.

{CONTINUA COLDPLAY}

Narração:

O livro da AnaMi é um dos poucos do mundo que sugerem uma playlist pra acompanhar. Essa é uma das faixas sugeridas. O título é “Enquanto eu respirar — dançando com o tempo e com as possibilidades de estar viva até o último suspiro”. E que essa nossa dança seja embalada pelo que, de verdade, vale a pena… Além da playlist você vai encontrar por lá muitos recados. O que mais me chamou a atenção foi um diagnóstico. Ou uma sentença. Um lembrete, como quiser, na página 205. “A finitude é crônica.”

{SS — COLDPLAY — YELLOW}

{TROCA DE TRILHA PARA A CHEGADA DA COLUNA DE TOM ALMEIDA}

E uma coisa, que eu acho que eu nunca dividi com você, ouvinte aqui do Finitude… Eu já falei isso por aí, mas acho que aqui no Finitude nunca. É que quem me apresentou pro nosso colunista Tom Almeida, foi justamente quem? Ana Michelle! Eu lembro de ter encontrado a AnaMi, conheci ela, numa gravação do podcast da jornalista Rita Lisauskas — aliás, Rita ta bombando aqui no Finitude esses tempos, segunda vez que eu falo dela agora durante a quarta temporada do Finitude, encontrei AnaMi, conversamos e ela falou: você precisa conhecer o Tom Almeida! E eu falei: mas quem que é o Tom Almeida? — Ele é criador do movimento inFINITO. E cá estamos, né, Tom?

Tom ri.

Juliana diz: bem-vindo a este episódio!

Tom: que sensacional, né, como as coisas vão… os nós vão se encontrando, o mundo vai fazendo com que a gente se conheça… E isso me lembra muito uma frase… Há uns dois anos eu assisti uma palestra de uma pessoa nos Estados Unidos falando sobre luto. Ela falava assim: eu perdi a minha pessoa, mas eu encontrei a minha tribo. E eu sinto isso muito forte, assim, de por causa das minhas perdas, né, eu faço o que eu faço hoje, mas eu tenho encontrado tanta gente maravilhosa como você, a AnaMi, que talvez eu não conhecesse sem esses processos. Então, perdi as minhas pessoas mas encontrei a minha tribo.

Juliana: e não é que a gente escolhe, né, obviamente a gente preferia estar vivendo com nossos pais, com as nossas pessoas queridas, mas uma vez que aquilo acontece, né, que que a gente vai fazer com isso, né?

E foi engraçado porque na semana em que eu conheci o Tom, em sete dias a gente se viu em três.

<Juliana e Tom dão risada juntos>

Juliana: eu não sei se você lembra disso… hahaha Era um puxando o outro pra evento, e realmente a minha vida mudou a partir dali, eu acho que aos poucos a gente vai formando uma comunidade, né, eu vejo muito isso no movimento inFINITO, vejo isso aqui no Finitude, e toda a comunidade dos dois entrelaçada. Por falar em movimento inFINITO, estamos chegando aí na data do Festival inFINITO 2020, a AnaMi vai ta lá, e uma das pessoas, inclusive, né, entrevistando a Torrie Fields. Que que você pode compartilhar com a gente a respeito dela, Tom?

Tom: putz, a Torrie Fields ela é uma força. Também a conheci, vi duas palestras dela nos Estados Unidos, ela tem uma história de ativismo e uma história de inspiração como a AnaMi. Ela teve dois cânceres, e ela passou por um processo de quando ela teve o primeiro câncer ela não tinha plano de saúde. E isso, no sistema de saúde americano, é muito desafiador. Então, a doença veio com esse gatilho de transformação da vida dela como também pra AnaMi, esses gatilhos de transformar e se enveredaram. Então, ela tem um trabalho de advocacy, de mudar políticas públicas nos Estados Unidos que é muito forte. Então, ela é superinspiradora, então ela vem com uma força, falando sobre ativismo, mas ao mesmo tempo ela vem com uma questão humana, da história dela, das perdas dela. Ela tem uma fala superbonita, que ela fala “o que que morreu, quais as coisas que foram morrendo nesse processo da doença?” É superinspirador. Eu gosto dessa força e dessa beleza que ela traz, vai ser incrível.

Juliana: uhum… são duas mulheres que são protagonistas das próprias histórias, né, independentemente de que histórias sejam essas, né, acho muito bonito olhar pra isso… Ainda dá tempo, né, Tom, de se inscrever pro Festival?

Tom: ainda dá tempo, sem querer causar nenhum frisson, mas a gente tem poucas vagas, mas ainda dá tempo. Vai acontecer agora neste fim de semana e ainda dá tempo, é só entrar no Instagram @infinito.etc que tem todas as informações.

Juliana: aliás, com código de desconto pro ouvinte do Finitude, 10% de desconto com a palavra FINITUDE, tudo em caps lock e aí você já ta inscrito cm 10% de desconto. Tom, to ansiosa, estarei contigo, segurando a tua mão à distância, porque o corona não permite… hahaha

Tom: mas estaremos juntos, a Ju fazendo toda a cobertura, e estaremos juntíssimos e vai ser uma delícia, espero todos lá!

Juliana: vamo que vamo! beijo, até daqui a 15 dias aqui no Finitude!

Tom: um beijo, até mais!

{TRILHA FINAL}

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