Finitude Podcast — Como lidar com o luto gestacional e neonatal

Finitude Podcast
22 min readOct 13, 2020

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Nesta semana a gente abre o leque do tema da edição passada. Hoje, o nosso episódio da série “Como lidar” se dedica a Como lidar com o luto gestacional e neonatal. Para profissionais da saúde, para famílias enlutadas e para quem está próximo a elas. No Brasil, não há protocolo para esta abordagem nos hospitais e maternidades. Mas a nossa entrevistada deste episódio é uma das autoras do livro “Como lidar: perinatal” e traz dicas valiosas para a experiência deste processo tão complicado.

{Vinheta da Rádio Guarda-chuva: este podcast é uma produção da Rádio Guarda-chuva. Jornalismo para quem gosta de ouvir. Ouve-se o som de um guarda-chuva abrindo e da chuva caindo}

Voz feminina de narração:

“Papai e mamãe, durante 38 semanas pude sentir o quanto vocês me amam e eu também já amava vocês. Sei que seriam pais excelentes, fiquem em paz!

Nasci no dia 6 de outubro de 2020, na maternidade Tsylla Balbino e pesei 2 quilos, 695.

Irei no coração de vocês, onde forem, pra sempre. Aos meus avós, todo o meu amor.”

Ao lado deste recado escrito à mão numa folha branca de papel, um print de dois pezinhos. E alguns corações desenhados.

A responsável por esta carta é a equipe do Centro Obstétrico da Maternidade Tsylla Balbino, de Salvador. Quem me mandou ela pelo Instagram foi a nossa ouvinte Vanda Machado, a quem eu agradeço pela escuta de sempre e agora por esta delicadeza.

O dia do nascimento e também da morte desta criança é o mesmo em que publicamos o episódio anterior a este, chamado “luto gestacional e neonatal” — a Vanda veio correndo me mandar essa foto, pensando na coincidência ou na sincronicidade disso tudo, né? Hoje, seguimos no tema, mas com o recorte da nossa série “Como lidar”.

Eu sou Juliana Dantas e este é o décimo episódio da quarta temporada do Finitude.

Finitude, aliás, que está como finalista do Prêmio Vladimir Herzog na Categoria “Áudio”, com o episódio “Confinamento: 3 meses depois”, ao lado de muita gente boa, muita reportagem incrível, uma honra estar por ali.

{TRILHA SONORA DE FUNDO}

Voz feminina da entrevistada:

{As instituições estão preparadas pra coisas que talvez nunca aconteçam, né, então se a gente for pensar questão de incêndio, fogo numa maternidade, num hospital, você tem lá as brigas de incêndio, você tem os profissionais que tão capacitados, todo o ano o corpo de bombeiros vai lá e simula, blablabla. E talvez eles nunca vão se deparar com uma faísca saindo ali dentro daquela instituição. Mas numa maternidade, em algum momento vai morrer um bebê}

Apresentadora:

Só que acontece que, no Brasil, não existe um protocolo, um padrão a ser aplicado nestas situações.

Voz feminina da entrevistada:

{Fica muito a cargo da equipe, né? Então é isso… Se naquele dia no plantão tem uma médica ou uma enfermeira ou uma profissional que ta ali no plantão que passou por algo parecido, ou ela própria ou alguém próximo que relatou, em geral tem um cuidado maior de oferecer o bebê ou de estimular que a mãe veja o bebê, ou de separar… ou, enfim, alguém que já teve contato com esse tipo de material, seja o livro ou sejam estes protocolos, né, de outros países, então fica muito a cargo ali do plantão. Então dali a doze horas trocou o plantão, aconteceu de novo, vai ser de outro jeito, entende?}

Apresentadora:

Quem vai nos conduzir por este universo hoje é a psicóloga e pesquisadora Heloísa Salgado. Ela e a obstetra Carla Polido são autoras do livro “Como lidar: luto perinatal”. A Heloísa é ouvinte aqui do Fini, gentilmente me mandou esse material que, de fato, tem tudo a ver com a gente, inclusive bate com a proposta da nossa série, né, “Como lidar”. Originalmente é um guia para profissionais de saúde, mas eu mesma, que não sou da área, aproveitei demais a leitura. É super humano, bem escrito, bem editado. A ideia é justamente suprir a falta de protocolo pro acolhimento em situações de perda gestacional e neonatal. Foi publicado pela Ema Livros, e conta com a reportagem “O filho possível”, da gigante Eliane Brum, com fotos do saudoso Marcelo Min. Uma das coisas que mais me chamaram a atenção, foram os depoimentos que a Heloísa coletou de mães que já passaram por essas situações de perda. Queria destacar um deles aqui, da página 44:

Apresentadora:

“Entramos na sala para fazer ultrassonografia. A médica ligou o aparelho. E lá estava ele: quieto, sereno, morto. Tirando isso, tudo normal: líquido, placenta, tamanho do bebê. Fiquei com pena da médica. Ela era jovem e claramente despreparada para tamanha tragédia. Não chorei, pois já sabia. Não lembro a reação do meu marido, nem a da minha mãe. Eu estava em outro lugar.” — Clarissa, mãe do Martin.

Heloísa:

{As queixas, né, que as famílias, que as mulheres fazem são enormes, pra não dizer que são muito tristes assim, né? Falas do tipo “depois de receber a notícia de que meu bebê havia morrido, a pior coisa que eu passei foi os dias em que eu estive internada”, né? Porque elas, em sua grande maioria estavam internadas com outras mulheres que estavam ou grávidas de um bebê saudável, ou com um bebê já nascido do lado, enquanto elas estavam sem o bebê, com o berço vazio que também não foi retirado do quarto, né, então ouvindo choro de bebê dia e noite, funcionários despreparados que chegam perguntando pelo bebê “uai, não trouxeram o seu bebê pra mamar?” ou que dão parabéns ou saem com o kitzinho do bebê recém-nascido do hospital, enfim… Dentro outras coisas, também, né… Um dos relatos mais chocantes que eu já ouvi, né — e são muitos -, mas de um profissional que falou pra uma mãe que tava com um bebê em óbito “olha, eu sinto muito, eu vou ter que te deixar agora porque eu não posso passar todo o meu tempo com você”, né, ela tava em trabalho de parto, “porque eu tenho outras gestantes com bebês que estão saudáveis e que têm preferência”.}

Apresentadora: É claro que não precisa ter protocolo e nem ser profissional da saúde pra perceber que este médico não tem condições de atender seres humanos, né? Nem animais. Enfim, ninguém. Mas a questão aqui no Brasil é que o fluxo de atendimento pra situações como essa não existe. Não to dizendo que não há hospitais que minimamente sabem o que estão fazendo ou que sejam bem intencionados. Mas em outros países há uma sistematização, um passo a passo de como tudo é feito. Da comunicação de uma má notícia, o ultrassom, a recepção da família dos pais, o acompanhamento do luto, afinal, né?. Foi isso que chamou a atenção da Heloísa quando uma amiga dela relatou a experiência da perda de um bebê lá no Canadá:

Heloísa: {E quando ela foi contando me chamou a atenção, né, o cuidado que tinha, a riqueza de detalhes que ela me trazia de situações que aconteceram ao longo do processo de internação e até depois, e que eu nunca tinha escutado falar, né? E ela, ao contrário das mulheres com quem eu conversada no Brasil, né, e que tinham passado pelo mesmo, ela falou uma coisa do tipo assim, né “tirando o fato de que o Léo morreu, todo o resto que eu vivi foi muito positivo, foi muito bom assim, sabe?” Porque ela não queria ver o Léo, mas aí o marido acabou indo lá, e aí ele foi descrevendo o Léo pra ela, e aí ela foi criando coragem, foi perguntando, foi pedindo pra ver a perninha, o bracinho e aí ela tava com o Léo no colo, ela tirou a roupa do Léo… Ela falou “Cê num sabe como que foi importante eu poder receber o Léo vestido e tirar a roupa do Léo, tirar a fralda, segurar um bebê do jeito que eu imaginei que eu ia segurar, né? Então são coisas que são pequenos detalhes, mas que fazem toda a diferença.}

Apresentadora: Então pelos próximos minutos, vamos à nossa tradicional listinha da série Como lidar. Há conselhos para profissionais de saúde, para o próprio casal que esteja passando por esta situação, para a família, para os amigos e até pra quem trabalha com pessoas que perderam o filho.

Heloísa: {A grande diferença entre uma mulher que ta ali com um bebê em óbito, né, que já morreu na sua barriga ou que logo depois do parto ou durante o parto morreu, e aquela mulher que ta lá com seu bebê com dificuldade de amamentar num pós-parto, a grande diferença é o coração que não bate…. (voz embargada) E eu acho que isso é o que a gente tem que pensar quando a gente vai oferecer assistência pra essas famílias.}

Apresentadora: A gente começa, então, pela linha de atendimento.

A maternidade deve facilitar para que exista ali a menos pior experiência pro casal enlutado. Buscar a normalidade possível para que existam lembranças:

Heloísa: {Tudo o que a gente puder garantir do mais próximo da normalidade, da expectativa daquela família, né, do que ela deseja, é melhor. Então eu vou entregar o bebê embrulhado num plástico, né, que algumas instituições fazem isso, vou entregar ele embrulhado num lençol da maternidade, né, ou vou pedir a roupinha que ela trouxe na mala e vou perguntar se ela tem uma roupinha que ou quer vestir o bebê dela ou quer que eu traga o bebê vestido? E aí eu visto todo o bebê, né, porque uma mãe quando recebe um filho, qualquer filho, esteja o coração batendo ou não, ela vai pegar o seu bebê, ela vai ver com quem esse bebê se parece, vai ver se o nariz é igual do avô, se a mãozinha é igual do irmãozinho, ela vai tirar essa roupinha desse bebê, vai ver se o bebê tem todos os dedinhos, entende? É isso que as famílias, as mães e o pais fazem, né? Então, quando a gente fala em garantir uma normalidade é você garantir que essa família possa viver aquilo que ela planejou. E ainda que ela nem tenha planejado, porque ela nem imaginou grandes coisas a respeito de parto, de pós-parto, de ver filho etc, mas que a gente dê isso como bônus, né? Por quê? Porque isso tudo vai gerar memória, né? E essas memórias vão ser importantes lá na frente quando ela tiver naquele processo de luto que já começou, na verdade, né, mas mais pra frente quando as fichas começam a cair, ela começa a sair, ela, ele, o casal, começam a sair daquele choque inicial da notícia, vai surgir a necessidade de aquilo que a gente conversou, né, de voltar nas lembranças, e aí voltarão lembranças como essa. Imagina você receber a lembrança de um bebê que tava embrulhado num saco, né, ou de um bebê que chega já vestido com uma fraldinha, inclusive, que você pega o seu bebê, ele tem peso de bebê, ele tem o bumbum de um bebê de fraldinha que a gente sabe como é, meinha, né, é outra qualidade de memória. É a memória do seu filho. A memória de um filho. Você vê o seu bebê, ele ta diferente do que você imaginava, porque ele não ta vivo, né, então muitas vezes — e da nossa cultura acha mórbido, né, a gente nem fala de morte, né, bom, você sabe melhor do que eu (risos), né, “magina, tirar foto de defunto!”, né? Esse o comentário que circula nas equipes “nossa, que esquisito tirar foto de defunto.” Num momento em que a pessoa possa criar memórias porque daqui a uns dias esse bebê vai ser enterrado, vai ser cremado, não tem condições de a gente voltar o tempo, o momento de se criar memórias físicas, emocionais, sensoriais é agora.}

Apresentadora: Essa iniciativa da equipe da maternidade de escrever a cartinha pra família, que a gente ouviu no começo do episódio, é uma das ideias bem-vindas. Também dá pra pensar em guardar uma mechinha do cabelo do bebê, a pulseira de identificação do berçário, várias possibilidades. A maternidade precisa estar pronta, até, para o caso de aquela família não querer levar essas lembranças quando for embora, mas voltar à clínica dali a um mês, 6 meses, 2 anos, que seja. Guardar aquelas memórias por um tempo mínimo dá a segurança àquelas mães ou aqueles pais de que podem mudar de ideia.

2. Nosso tópico agora fala diretamente com o profissional da saúde: não tome decisões pela família. Sempre que possível, pergunte, dê autonomia:

Heloísa: {A ideia de que o profissional de saúde ele é uma pessoa que sabe muito, ele é uma pessoa que sabe de muitas técnicas, né, e pode ajudar muito o paciente, mas vai depender daquilo que o paciente quer, precisa, e não tem ninguém que melhor sabe de si do que a própria pessoa que habita aquele corpo, né, então o médico não sabe o que é melhor pro paciente a não ser que ele converse com o paciente e mostre pra ele quais são as possibilidades, e aquela pessoa que em geral é quem melhor conhece a si, como o seu corpo funciona e o que ele tem de expectativa da vida, nessa conversa eles podem chegar ao melhor tratamento, ao melhor tipo de assistência, enfim. Então isso é uma coisa que já sabe que acontece e acontece de uma forma muito bem feita, mas aqui no Brasil não é a regra ainda, eu sei que tem várias pessoas que já têm mudado isso, mas é isso, você compartilhar com o maior interessado por aquilo que é o paciente, né?}

Apresentadora: Procure deixar todas as cartas na mesa e apresentar o custo-benefício de cada tomada de decisão:

Heloísa: {É muito comum as mulheres que recebe, a notícia, né, já quando a gravidez ta adiantada próxima ao parto e recebe a notícia de que o bebê ta em óbito, de quererem uma cesárea. E, de fato, né, eu acho que naquela hora a sensação primeira é “Se eu fizer uma cesárea eu vou resolver logo”, como se fosse acabar com aquele sofrimento, ou enfim, né? É um pensamento ali dentro dessa situação, desse contexto de uma notícia muito traumática. Então, cabe à equipe mostrar pra essa mulher os riscos e os benefícios de uma cesárea, né, naquele momento quando é possível conversar, porque às vezes de fato não tem nem possibilidade, é um quadro grave, você precisa mesmo fazer uma cesárea e, enfim, resolver logo. Mas se, em última instância, a decisão for de uma cesárea, né, mesmo a gente sabendo que o Brasil tem um número elevado de cesáreas, que o ideal seria mesmo um parto normal, né, até pra ela ter esse tempo de elaborar isso tudo o que ela ta vivendo e tomar uma decisão mais refletida minimamente… Que pra ela depois ter uma nova gestação vai ser melhor porque ela não tem uma cicatriz no útero, bom, eu poderia falar cinco minutos aqui sobre os benefícios do parto normal. Se, em última instância, ela resolver que não dá conta, que ela quer, que é insuportável, inconcebível pra ela naquele momento passar mais uma hora, né, então é uma cesárea.}

Apresentadora: 3. O fluxo do hospital ou da clínica precisa considerar a necessidade de planejamento pra qualquer situação que venha a se desenhar:

Heloísa: {Mulheres que tão grávidas montam um plano de parto, hoje a gente sabe que esse é um recurso maravilhoso, né, por N motivos montar um plano de parto. Essa mulher também deveria montar um plano de pós-parto, né, do que que ela quer depois que o bebê nasce. E talvez um plano de funeral. Que que ela vai querer fazer, né? Porque também é uma coisa muito triste que eu vejo acontecer porque é isso, né, “então ta, seu bebê morreu, você precisa então ir lá na funerária, você precisa resolver não sei o que etc”. A pessoa entrou na maternidade pra sair de lá com um bebê vivo. E aí alguém fala pra ela que ela tem que chegar até tal hora, o marido tem que chegar até tal hora, porque não sei o que… Que cabeça que a pessoa tem pra resolver qualquer coisa assim, né? Não! Você tem que dar um tempo, você tem que explicar, você tem que, né, na medida do possível, e isso faz parte de um protocolo do luto perinatal dentro de uma instituição, você por exemplo dar essas informações mínimas, né? “Olha, o caminho é esse aqui na nossa cidade, você tem que fazer isso, isso, isso, mas não a duas horas antes de fechar a funerária, entende? Sei lá, to dando um exemplo…}

Apresentadora: Antes de virar a página da nossa listinha, vamos recapitular alguns destaques a respeito do luto sobre o qual já falamos em outros episódios, mas que é sempre bom a gente ter fresco na cabeça: o luto é um PROCESSO, natural e saudável de qualquer ser humano que perde algo ou alguém. Não existe regra, intensidade ideal, tempo mínimo ou tempo máximo para viver um luto. Não existem ordens de sentimentos a serem sentidos — ou mesmo uma tabela de quais sentimentos são esses. Nem todo luto é de choro e nem todo mundo usa preto. Cada pessoa vive o luto de um jeito. Podem todos da mesma família terem perdido a mesma pessoa, mas cada um vai reagir de uma maneira — e ta tudo certo.

Dito isso, vamos abrir o nosso ponto quatro. Agora dedicado aos familiares daqueles pais ou daquelas mães em luto: é difícil mesmo ver quem a gente ama sofrer, mas procure não deixar que a sua ansiedade em acabar com a dor machuque ainda mais os enlutados. Não existe solução fácil para problemas complexos:

Heloísa: {Eu acho que o mais importante é não tomar a frente nas decisões com relação com nada que diz respeito ao bebê, né, à gestação. Quem tem que tomar decisão é ali a mulher, o casal, né, qualquer tentativa de proteger… Porque a ideia é essa “eu desmonto o quarto, então porque o quarto não ta montado ela não lembra do bebê, e aí se ela não lembra, ela não sofre”, o raciocínio é esse. A grosso modo, né? Mas como as mulheres costumam dizer, “as pessoas não sabem, né, elas acham que a gente só sofre quando a gente lembra do bebê. Elas não sabem que a gente sofre 24h por dia. A gente lembra do nosso filho 24h por dia. Então não vai ser porque alguém perguntou que eu vou sofrer mais, eu já estou em sofrimento”, né? Então essa tentativa de fazer alguma coisa pra evitar sofrimento não vai surtir efeito nenhum}

Apresentadora: 5. Estar presente e prestar ajudas práticas são duas dicas valiosas pra quem ta por perto:

Heloísa: {A gente não consegue resolver o sofrimento do outro, né, a gente pode não piorar o sofrimento do outro. Agora, resolver o sofrimento do outro… O que diz respeito ao luto, ao sofrimento pela morte, pela dor, pela perda, a dor emocional, a gente não consegue resolver. A gente consegue melhorar a vida dele, a gente pode ta ao lado dessa pessoa, a gente pode fazer coisas práticas nesse momento, então ir ao supermercado, se oferecer pra ir à farmácia, mandar frutas, lavar roupa, lavar louça, fazer uma faxina. Coisas assim são super úteis. Você pergunta, se a pessoa quer, consulta, e se dispõe a fazer. Essas coisas são muito importantes nessa situação que a gente tem uma mulher que acabou de passar por um parto, então ela ta com o corpo em recuperação, com as emoções em frangalhos, né, e sem condições de tomar grandes decisões — e a gente nem recomenda que tome grandes decisões nesse momento, né, então até o casal ou a mulher chega “ai, eu não sei se eu desfaço ou se eu não desfaço, se eu dou as roupinhas ou se eu não dou….” Espera, não toma a decisão agora, no momento certo você vai saber o que é pra fazer, né, agora não é hora, porque qualquer decisão tomada agora pode ser precipitada e você pode se arrepender depois, é muito precoce, espera, então a gente mesmo recomenda que o próprio enlutado espere, né, um pouco pra tomar essas decisões, então o outro tomar as decisões por eles, né, como essa é muito difícil, e simplesmente estar ao lado. E uma das coisas que eu acho que as mães, as mulheres, principalmente falam que mais valorizam e gostam é de falar do seu bebê.}

Apresentadora: E aqui a gente não ta dizendo que vai ser uma escuta fácil. Mas a gente estar minimamente aberto a ouvir sem julgar, a fazer este exercício que a gente ta fazendo hoje, de saber como se comportar, vai facilitar um pouquinho as coisas.

A volta ao trabalho de uma mãe ou de um pai que perdeu um bebê pode ser complicada. Não sabemos o que fazer, o que dizer, onde colocar as mãos. Ou simplesmente nem notamos que aquela está sendo uma perda grande praquelas pessoas.

O que nos leva ao ponto 6: se você é chefe ou é do RH, uma simples ligação pode ajudar:

Heloísa: {Perguntar o que a pessoa quer e a pessoa prefere. Então também é uma coisa que pode ser feita. O chefe sabe que a funcionária vai voltar, entra em contato antes, “olha, queria saber se você quer falar sobre o assunto, se você prefere que as pessoas não comentem, como é que é…” Também é uma possibilidade, entende? O que incomoda muito as mães, principalmente, é esse silêncio, né, e fingir que nada aconteceu. Porque aquilo que aconteceu foi tudo muito grandioso, né, inclusive porque foi o nascimento do filho, foi o dia em que ela conheceu o filho, enfim. Então, fingir que nada aconteceu é uma coisa que é essa sensação que fica, “poxa, parece que nada aconteceu”.}

Apresentadora: Pela Lei, mulheres que têm um filho nascido morto em qualquer momento a partir da 23ª semana, têm direito à licença-maternidade + cinco meses de estabilidade. Mas há uma série de poréns aí. Essa regra vale só pra quem é CLT. Funcionárias públicas, por exemplo, dependem de legislações específicas do poder público a que estão submetidas. A não-existência deste direito pra quem perdeu o neném com menos de 23 semanas não quer dizer que esta pessoa tenha uma dor menor.

Antes de a gente passar pra parte final desta listinha, aí mais direcionada ao casal, o item 7. Vale tanto para profissionais da saúde quanto para amigos e familiares que rodeiam aqueles enlutados: o aborto, seja espontâneo ou provocado não tem diferença. A dor precisa ser respeitada:

Heloísa: {O que a gente tem que ter em mente, é que independente de o aborto ter sido provocado ou espontâneo a gente tem ali uma mulher em sofrimento. Primeiro porque se ela tomou a decisão de interromper a gestação, seja lá por qual motivo for, ela com certeza esteve e está numa situação de sofrimento. Primeiro porque ninguém fica feliz, ninguém fica contente em tomar uma decisão de interromper uma gestação, né? Segundo porque a gente ainda tem um bônus no Brasil que é a ilegalidade. Então isso traz um peso maior ainda, né, complexifica este sofrimento. Então achar que porque a mulher optou por interromper que ela não sofreu, é o contrário, né, ela ta inclusive num sofrimento muito mais complexo, né, por ter tomado essa decisão e ido adiante. Já a mulher que teve um aborto espontâneo é isso, ela não pôde controlar e aconteceu. E ela está em sofrimento, obviamente, independentemente se ela estava grávida há 5 semanas, se o exame de gravidez foi ontem ou anteontem. A gente sabe que ao pegar um resultado positivo a grande maioria das mulheres já vai rapidamente planejar os meses que se seguem, né? Já fez as contas e já sabe com quantos meses vai estar no Natal e que num tem roupa pra usar. Coisas desse tipo, dando um exemplo, então o fato de ter sido uma perda recente como essa, de poucas semanas, não fazer com que ela esteja em menor sofrimento do que aquela que perdeu com doze, com vinte, com quarenta ou um óbito depois de nascido. Se perder o bebê já é um luto não-reconhecido, né, de uma maneira geral, o aborto espontâneo mais ainda, né, porque aos olhos dos outros, “magina, era só um embrião, um monte de células, né”, enfim, “foi melhor assim, você nem ouviu o coração, você nem sentiu, nem fez enxoval”, mas não é assim, é um sofrimento tão importante quanto qualquer outro, né. Então eu acho que a gente tem que entender que sofrimento obviamente não se mede e que a gente precisa validar o que as pessoas estão falando que estão sentindo e dar espaço pra que elas possam falar e, inclusive, viver isso, né? Então se ela precisou de um afastamento no trabalho por mais dias do que o esperado, ela precisou, né, ela provavelmente ta em dificuldade e precisou disso, né, ela não ta fazendo mal uso disso.}

Apresentadora: Agora entramos na parte do luto entre o casal propriamente. Este é um período delicado para o relacionamento. Cada um vive esse momento de um jeito e pode haver brigas ou até rompimentos pelo descompasso que se dá nesta fase. O tópico oito dessa nossa listinha de hoje é justamente pra que a gente tente guardar as proporções deste período:

Heloísa: {Quando a mulher acaba de ter um bebê, né, independentemente se ele nasceu com vida ou sem vida, né, ela vai cair no puerpério, imediatamente, com ou sem bebê no colo em casa.

Apresentadora: — aqueles 45 dias após o parto, sabe?

Heloísa: E o puerpério já é um momento, assim, difícil pra caramba pra todas as mulheres, né, porque envolve todas as questões hormonais, envolve vários aspectos, né, então o puerpério ele já é difícil. Com um bebê saudável, ótimo, que dorme, né, que ta lá dentro de casa no seu colo, mamando bem, o puerpério já costuma ser uma fase complicada. Quando a gente pensa nas mulheres que tiveram a perda dos bebês, né, é um puerpério muito mais complicado. Então eu falo que antes de elas terem que lidar com o luto elas têm que lidar com o puerpério, ou elas lidam com o luto misturado com o puerpério, então com oscilações muito maiores de humor, que são típicas do puerpério, mas isso acontece com o luto misturado, entende, então assim, a sensação que eu tenho observando é que elas têm que primeiro vencer aquele primeiro mês e depois que passa um pouco, as coisas se equilibram, inclusive do ponto de vista biológico, orgânico, aí elas entram numa outra fase, entende? A mulher ainda tem que lidar com o corpo, ela ainda tem que lidar com a mama que produz leite. Então ela passou pela perda do filho, ela enterrou o filho dela, o leite desceu, né, se ela não tomou medicação, e não é pra tomar medicação a qualquer custo, mas uma coisa que deve ser conversada, decidida a partir de riscos e benefícios, né, enfim, e a mulher deve tomar a decisão, inclusive se ela não quer doar leite, né? Esse é um outro capítulo da discussão de luto que a gente tem pra discutir também que é essa questão da doação de leite aqui no Brasil por mulheres que perderam o bebê.}

Apresentadora: Ou seja: duas pessoas diferentes, que perderam o mesmo filho, mas com dores distintas. Psicologicamente. Fisicamente. E, em casos de casais heterossexuais, ainda existem tendências distintas de comportamento:

Heloísa: {Não podemos generalizar, dizer que toda mulher vai ser de um jeito e todo homem vai ser de um jeito. Mas os homens costumam falar menos sobre os sentimentos, né, com relação a questões de luto. Então eles falam menos, eles se fecham mais, eles ficam mais confortáveis nas questões práticas, né, então de resolver as questões de funeral, as questões médicas, legais, de cartório ou de, enfim, em geral os homens ficam mais confortáveis. E aí porque eles não falam, e aí porque eles não choram, isso obviamente gera ou pode gerar nas mulheres um desconforto do tipo “ele não ta sofrendo”, né? Mas não é porque ele não fala e ele não chora que ele não ta sofrendo. E por outro lado a mulher está ali em pleno sofrimento, choro, enfim, falando, e as mulheres gostam de falar de seus filhos, então tem esse descompasso mas que também a gente observa também em outros lutos, né, não nesse específico, né, que os homens costumam falar menos sobre seus sentimentos e estarem mais neste lugar de resoluções de problema e esses conflitos aparecem.}

Apresentadora: Quando são duas as mães essa diferença de gênero some. Mas, ainda assim, a que gestou sem dúvida passará por um processo diferente do da outra.

Independentemente da formação familiar, o casal se depara com um desafio enorme:

Heloísa: {Você descobrir como que você vai continuar sendo mãe e pai de um bebê que morreu, que você teve pouca história, né, ou quase nenhuma. Quando eu falo do bebê, quando eu falo do sentimento do bebê, quando eu lembro, isso faz parte da história daquela família, faz parte da história daquele bebê. É o capítulo que se segue após a morte. Então quando eu falo desse bebê eu to dando sequência a isso, né, então isso é muito importante, eu vou mantendo ele vivo. O problema é quando não me deixam falar, evitam que eu fale e aí é o atestado de que o bebê morreu mesmo, porque ninguém ta querendo escutar sobre ele.}

Apresentadora: Eu encerro a nossa listinha agradecendo à Heloísa pela participação, por compartilhar dicas preciosas com a gente hoje e eu queria ler um trecho de mais um depoimento que eu encontrei no livro dela — aliás, vale dizer que ela só conseguiu depoimentos de MÃES, nenhum pai falou… O que reforça aquela tendência a respeito do comportamento dos homens sobre o qual a gente falou agora há pouco. Enfim… Pra gente pensar.

A mãe que escreveu este depoimento é a Fernanda:

{Trilha sonora leve}

“Lunna me mostrou o outro lado da morte. A beleza de não estar aqui, mas continuar existindo, de amar de forma incondicional, mesmo que isso signifique não poder tocar, beijar, abraçar, ninar, mas apenas SENTIR.

Escrevo meu relato de parto no dia em que minha segunda filha completa dois anos de idade. Lunna veio me preparar para ser uma mãe muito melhor pra sua maninha. E a dor? Sempre vai estar ali. Têm dias em que não dói. Têm dias em que arranha. E têm dias em que parece que você vai morrer de tanta dor. Porque essa dor não passa, apenas muda de cor.”

Pra você que gostou dessa nossa conversa de hoje, quer se aprofundar no conteúdo, eu recomendo o livro da Heloísa Salgado com a Carla Polido. Vou repetir o nome aqui pra você poder anotar, chama: “Como lidar: luto perinatal”. A Ema Livros, editora da publicação, gerou um cupom de desconto pros ouvintes do Finitude que assinam a nossa newsletter. Você que colabora com o nosso financiamento coletivo em apoia.se/finitudepodcast vai receber um e-mail com o código de 20% off, ta bom, na quinta-feira chega aí na sua caixa.

E termina aqui a nossa sequência de dois episódios sobre o luto gestacional e neonatal. Eu sei que pra muita gente pode ser um tema puxado, e é mesmo, mas justamente por isso é que precisamos entrar em contato com ele pra saber como lidar minimamente, né? Coincidentemente, dia 15 de outubro — a quinta-feira da semana de publicação deste episódio — é o Dia Internacional de Sensibilização à Perda Gestacional e Infantil. Eu poderia até fingir que foi tudo programado, mas não foi, não. É uma dessas sincronicidades da vida… :)

{FIM DA TRILHINHA}

Bom, hoje seria dia do nosso colunista Tom Almeida, criador do movimento inFINITO, por aqui, mas excepcionalmente nesta edição ele não participa porque está curtindo as merecidas férias. Ele volta daqui a 15 dias :)

Terminando de ouvir o Finitude, que tal buscar pela Rádio Escafandro aí no seu tocador de podcasts favorito? Num destes mergulhos profundos que o Tomás Chiaverini faz em histórias inusitadas, ele gerou o episódio Planeta Plástico:

Voz do Tomás Chiaverini: {Faz algum tempo que eu penso em como falar sobre isso. Sobre os limites das nossas ações num mundo em que parece desgovernado em proporções planetárias. Se o ministro do meio ambiente responde ao inferno que tomou conta do Pantanal com um risinho irônico. Se o presidente dos Estados Unidos questiona o aquecimento global, de que vai adiantar a gente fazer compostagem ou separar o nosso lixo? Eu passei um tempo com essa ideia ricocheteando nos miolos sem saber muito por onde começar, até que eu lembrei de uma história….}

Assim como a gente, a Rádio Escafandro é um dos podcasts de fundação da Rádio Guarda-chuva, que é a primeira rede brasileira de podcasts exclusivamente jornalísticos.

{TRILHA FINAL}

Se você acha que aproveitou este episódio, as informações foram importantes pra você, que tal recomendar pra sua família, seus amigos? Pode compartilhar, também, e marcar a gente nas redes sociais. No Instagram, estamos como finitudepodcast. No Twitter, ao contrário, podcastfinitude.

A íntegra deste roteiro, com toda a minha fala e a transcrição da entrevista, está no link do Finitude no Medium, que eu to deixando pra você na descrição deste episódio. Assim, pessoas com deficiência auditiva também conseguem acompanhar o nosso conteúdo e são muito bem-vindas por aqui.

Brigada por ficar comigo até agora, um beijo pra você.

{Vinheta da rede B9, que diz: este podcast é apresentado por b9.com.br}

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